Post de Rui Baptista no De Rerum Natura
«Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto» (José Cardoso Pires, 1925-1998).
O recente e oportuno post do Professor Carlos Fiolhais, recentemente publicado (10/10/2011) e intitulado“Aprender a Aprender”,abordou o controverso papel da memória nas aprendizagens escolares.
Por entender que um meu post (aqui dado à estampa em 08/02/2011), “O papel da memória nas aprendizagens escolares”, tendo como suporte um leque de opiniões que vai desde Vitorino Magalhães Godinho a conceitos da neurofisiologia, poderá ter algum interesse, aqui o reproduzo sem intuitos dogmáticos mas, como diria Ortega y Gasset, apenas, como um meio de discussão permanente. Com ligeiríssimas alterações, transcrevo o que então escrevi:
"Em crítica de Vitorino Magalhães Godinho, falecido em Abril deste ano, reputado académico e antigo Ministro da Educação e da Cultura, dos 2.º e 3.º governos provisórios, “dispensou-se a memorização da tabuada ou das regras da gramática, como das datas mais importantes da história de Portugal. E de modo geral receia-se que recorrer à memória afecte os frágeis cérebros infantis ou juvenis” ("Problemas da Institucionalização das Ciências Sociais e Humanas em Portugal", Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Lisboa, 1989).
E, por se tratar da complexa “maquinaria da memória”, refiro o acontecido com José Cardoso Pires, “escritor que veio do branco, da angústia, de um isolamento sem nome, sem assinatura e sem memória” (João Lobo Antunes, Memórias de Nova Iorque e Outros Ensaios, Gradiva, 2003, p. 212), na altura de um AVC de que foi vítima. Relata-o António Guerreiro, da forma seguinte: “Todos os acontecimentos têm uma data e um local precisos. Este deu-se em ‘Janeiro de 1995, quinta-feira’, quando o José Cardoso Pires, ele mesmo, à mesa do pequeno-almoço, se começa a sentir mal e faz uma pergunta estranha à mulher – ‘Como é que tu te chamas?’, que lhe responde devolvendo-lhe a pergunta: 'Eu Edite. E tu?’. Resposta: ‘Parece que é Cardoso Pires’" (Expresso, 24/05/1997).
"Em crítica de Vitorino Magalhães Godinho, falecido em Abril deste ano, reputado académico e antigo Ministro da Educação e da Cultura, dos 2.º e 3.º governos provisórios, “dispensou-se a memorização da tabuada ou das regras da gramática, como das datas mais importantes da história de Portugal. E de modo geral receia-se que recorrer à memória afecte os frágeis cérebros infantis ou juvenis” ("Problemas da Institucionalização das Ciências Sociais e Humanas em Portugal", Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Lisboa, 1989).
E, por se tratar da complexa “maquinaria da memória”, refiro o acontecido com José Cardoso Pires, “escritor que veio do branco, da angústia, de um isolamento sem nome, sem assinatura e sem memória” (João Lobo Antunes, Memórias de Nova Iorque e Outros Ensaios, Gradiva, 2003, p. 212), na altura de um AVC de que foi vítima. Relata-o António Guerreiro, da forma seguinte: “Todos os acontecimentos têm uma data e um local precisos. Este deu-se em ‘Janeiro de 1995, quinta-feira’, quando o José Cardoso Pires, ele mesmo, à mesa do pequeno-almoço, se começa a sentir mal e faz uma pergunta estranha à mulher – ‘Como é que tu te chamas?’, que lhe responde devolvendo-lhe a pergunta: 'Eu Edite. E tu?’. Resposta: ‘Parece que é Cardoso Pires’" (Expresso, 24/05/1997).
A recuperação de José Cardoso Pires, segundo o neurocirurgião João Lobo Antunes, ficou-se a dever ao facto de “a área que temporariamente ‘deixou à sede e à fome, e pela qual falava, lia e escrevia, tudo funções em que é exímio’, era mais musculada que a do comum dos mortais”. Um ano antes da sua morte, Cardoso Pires escreveu o livro autobiográfico De Profundis, Valsa Lenta, em que relata a sua “memória de uma desmemória” sobre o sofrimento atroz que a perda de memória, ainda que temporária, lhe trouxera.
O cérebro e a memória são matérias para mim particularmente gratas. Existe uma má memória dos alunos (na gíria académica, os chamados "marrões") que, sem perceberem patavina da matéria estudada, papagueavam nos exames orais, ou escarrapachavam ipsis verbis no papel das provas, os livros e sebentas. Quiçá por esse facto generalizou-se o princípio de que a memória pode andar arredada da inteligência, um conceito abstracto que abarca uma panóplia imensa de formas de aptidão para as ciências, para as humanidades, para as belas-letras e artes, para a prática desportiva, etc. E isto sem falar na inteligência emocional, estudada por António Damásio, neurocientista português de prestígio internacional e autor do bestseller de 1994: O Erro de Descartes.
Mas já mesmo quinze anos antes, David Krech, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, escreveu em Cérebro e Comportamento (Salvat, Rio de Janeiro, 1979, p. 84): “Acreditava-se que havia uma distinção radical entre o comportamento racional e o comportamento emocional. No entanto, os modernos estudos sobre o cérebro demonstram que esta dicotomia carece completamente de significado. Quando falamos de cérebro temos de especificar se se trata de todo o cérebro ou apenas do córtex cerebral, pois há toda outra parte do cérebro, a parte mais antiga (sob o ponto de vista de desenvolvimento das espécies) que é a parte mais intimamente ligada com as emoções". À pergunta “em que situação se encontram actualmente as pesquisas no campo da neurofisiologia?”,respondeu Krech de forma sugestiva e humilde: “A neurofisiologia encontra-se num sótão escuro procurando um gato escuro, sem ter a certeza que ele ali está. Seu único indício são leves ruídos que parecem miados” (ibid., pp. 87 e 88).
Mesmo tendo em conta as surpreendentes descobertas sobre o cérebro que a tomografia por emissão de positrões tem proporcionado, receio que as indagações do filósofo, matemático e físico Blaise Pascal tardem em encontrar uma resposta científica: “Que quimera é o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que prodígio? Juiz de todas as coisas, verme imbecil, cloaca de incerteza e de erro, glória enojo do Universo. Quem deslindará esta embrulhada?”
Todas as formas de inteligência ou aptidões, atrás elencadas, fazem parte do nosso código genético (aqui, o termo código genético é utilizado de forma pouco rigorosa, antes deveria ser utilizado o termo genoma, ou conjunto de informações genéticas), em localizações corticais com funções específicas e respectivas associações na dependência da acção das substâncias químicas (os neurotransmissores), enfim de todo o corpo, numa condição sintetizada pelo psiquiatra alemão Ernest Krestchemer: “O homem pensa com o corpo todo”.
Devido à sua plasticidade, o cérebro, interagindo com o meio ambiente e se exercitado através de uma “ginástica” apropriada, pode melhorar, até um determinado limiar, o seu desempenho. Em condições patológicas, como, por exemplo, nos AVC, fica-se a dever à acção vicariante das zonas corticais não atingidas, e à força de vontade do paciente, o maior ou menor êxito da reabilitação funcional.Para melhor se compreender a complexidade anatómica e funcional do cérebro, nada melhor do que ouvir o neurocientista Richard Thompson, da Universidade de Carolina do Sul: “O cérebro humano consta aproximadamente de 12 biliões de neurónios e o número de interconexões entre eles é superior ao das partículas atómicas que constituem o universo inteiro”. São números impressionantes que escapam ao entendimento comum. Para a fisiologia, “o fundamento da memória reside nas mudanças eléctricas que se produzem no cérebro quando se recorda alguma coisa".Nos fenómenos cerebrais tem um papel importante a memória, que é indispensável às aprendizagens escolares, e não só. Para compreender o papel da memória na aprendizagem os neurofisiologistas defendem a necessária a colaboração de professores, neurologistas, bioquímicos e psicólogos. A memória vai sendo perdida com a idade (daí o interesse em exercitá-la em idades avançadas), assumindo-se como uma verdadeira patologia na doença de Alzheimer.
A memória, no nosso dia-a-dia, é uma verdadeira biblioteca para a inteligência e sua ligação ao raciocínio. A inteligência depende de uma associação de ideias, pois como nos diz M. L. Abercrombie, que se dedicou ao estudo dos processos de percepção e raciocínio, “nunca nos encontramos perante um acto de percepção com a mente inteiramente em branco, pois estamos sempre em estado de preparação ou de expectativa, devido a experiências passadas.”
Ficamos a dever aos “sulcos” que a memória vai deixando no cérebro (os chamados engramas) a capacidade de nos lembrarmos dos acontecimentos da nossa vida e, obviamente, das aprendizagens que durante ela foram sendo feitas. Lamentavelmente, o nosso ensino tem subalternizado o papel importantíssimo da memória na aprendizagem do aluno, como ocorria na recitação de poesias, na aquisição e preservação de conhecimentos de história, de geografia, da tabuada, etc. Esta última actividade tem sido substituída por maquinetas de calcular operadas pelo dedo indicador.Estas pequenas migalhas de um apaixonante e complexo estudo mais não pretendem do que chamar a atenção dos educadores para o importante papel da memória, tão maltratada actualmente no nosso ensino, como se fosse um anátema ou uma praga. Menosprezar o papel da memória é um erro. Ora, os erros no ensino pagam-se bem caro e com elevados juros de mora!”. RUI BAPTISTA
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